sábado, 26 de janeiro de 2013

ÍNDIOS E ESTEREÓTIPOS


Desconstruindo estereótipos e lugares comuns: o saber antropológico e a questão indígena
Indicaremos aqui, de modo sucinto, a complexidade dos dados e dos estudos voltados a identificar e delimitar uma terra indígena, bem como dos conhecimentos antropológicos, de modo geral. Para tal propósito, focaremos um contexto específico: o das reivindicações fundiárias feitas pelos Guarani Kaiowa e Guarani Ñandéva, em Mato Grosso do Sul. Com isto queremos evitar sermos excessivamente generalistas e, ao mesmo tempo, poder informar sobre o caso que desencadeou a reação de uma certa mídia, representada aqui pelos veículos e autores citados. O objetivo é revelar quão superficiais, mal informados, caricaturais e mal intencionados são os argumentos das matérias jornalísticas aqui tratadas.
Em primeiro lugar, é totalmente falso o fato de que todos os povos indígenas sejam ou tenham, um dia, sido nômades, centrando as suas economias na caça, na pesca e na coleta. E mais importante ainda, quando nômades, estes não “vagam” por um espaço geográfico, mas constroem, através de suas experiências acumuladas ao longo de séculos, verdadeiros territórios de referência, nos quais baseiam suas atividades e desenvolvem suas vidas.
Agricultores Milenares
Em segundo lugar, significativa parte dos indígenas centra suas atividades econômicas na agricultura. Os Guarani aqui em tela são milenares agricultores, existindo uma ampla e rica literatura histórica, arqueológica e antropológica que documenta este fato. Esta mesma literatura coloca em destaque também o fato de os Guarani terem, ao longo de milênios, num processo de expansão civilizacional em busca de terras férteis, realizado amplas migrações; isto de modo algum os caracteriza como nômades, como é muitas vezes erroneamente apresentado pela mídia. Com efeito, ao considerarmos os últimos séculos, percebe-se um modo de ocupação sedentário; milhares de sítios arqueológicos justamente revelam para os Guarani uma continuidade ocupacional e o desenvolvimento de rotações de cultivos ao redor de centros de habitações. Estes centros são construídos nas proximidades de fontes de água (nascentes, córregos e rios), formando amplas redes de comunidades locais. A relação entre estas comunidades, que permite a integração social e a cooperação, é determinada por uma elevada mobilidade espacial, para participar de rituais, realizar atividades econômicas (coleta, caça e pesca), socializar, visitar parentes, estabelecer casamentos, formar ou fortalecer alianças e, antigamente, para organizar e empreender ações guerreiras. Como fica claro, esta mobilidade não representa absolutamente um “vagar” pelo Brasil (ou entre Brasil e Paraguai), conforme pretendido por Leonardo Coutinho em sua matéria.

"Os povos indígenas não podem ser vistos como estáticos, relegados a um modo de vida pretérito, nem como seres passivos, suas vidas, desejos e inspirações sendo definidas apenas por fatores externos ao seu próprio agir"

Em terceiro lugar, é importante destacar que os indígenas não são uma realidade abstrata e homogênea, cada povo sendo um sujeito histórico com suas peculiaridades, constituídas ao longo do tempo, em situações sociais, econômicas e territoriais concretas. Neste sentido, os povos indígenas não podem ser vistos como estáticos, relegados a um modo de vida pretérito, nem como seres passivos, suas vidas, desejos e inspirações sendo definidas apenas por fatores externos ao seu próprio agir. Não cabe dúvida de que o impacto da colonização e o contato com outras civilizações têm-lhe proporcionado novos saberes, tornando as experiências individuais e coletivas mais ricas e diversificadas. Por outro lado, é também verdade que estas novas experiências não são realizadas a partir de um vazio de informação, de parâmetros e de lógicas de entendimento sobre o mundo; os indígenas vêm, ao longo de séculos e milênios, construindo tradições de conhecimento, produzindo cosmologias, definindo quadros morais, lógicas de troca, circulação e uso de bens materiais e simbólicos, fatores estes que permitem a definição de parâmetros para dar um sentido específico a suas coletividades.
É a partir da compreensão destes parâmetros, que costumam ser bastante sofisticados, que podemos entender qual espaço um determinado objeto ocupa na escala de valores definida pelos indígenas, qual será o seu destino de uso, suas propriedades simbólicas, como este pode ser transacionado, trocado, distribuído, etc. Para dar um pequeno exemplo, quando se encontram geladeiras nas residências kaiowá, estas são utilizadas de uma forma bem específica: suas prateleiras são quase totalmente ocupadas por garrafas PET cheias de água, que é destinada ao preparo do tererê (infusão fria da erva mate), consumido geralmente de modo coletivo, quando da visita de parentes, algo constante nas residências destes indígenas. Fica, portanto, óbvio que a eficiência técnica da geladeira, como instrumento que subtrai calor, é algo apreciado pelos kaiowá, mas o uso social deste objeto é definido de modo bem particular. Este exemplo representa apenas a ponta de um iceberg, cuja base não poderemos apresentar aqui por falta de espaço, havendo que se levar em conta todos os parâmetros acima descritos, que são absolutamente diferentes daqueles que servem como referência aos membros da nova classe média nacional, e não similar, como pretendido em seu blog por Reinaldo Azevedo.
 O artigo acima expressa o ponto de vista da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Fabio Mura é antropólogo, membro da Comissão de Assuntos Indígenas (CAI-ABA).
Da revista Caros Amigos 

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