“É mudando o mundo que a gente se transforma”
POSTED IN: ALTERNATIVAS, CAPA, PÓS-CAPITALISMO ( SITE OUTRASPALAVRAS)
Frei Betto busca síntese que combine valorização das atitudes pessoais com produção de grandes reformas sociais, como a agrária e a política
Ligado à Teologia da Libertação, escritor e assessor de movimentos sociais, Frei Betto já tinha uma longa história de luta política quando se tornou assessor especial do presidente Lula e coordenador de mobilização social do programa Fome Zero, em 2003 e 2004. Preso pelos militares entre 1969 e 1973, recebeu em 1982 o Prêmio Jabuti pelo livro Batismo de Sangue, em que descreve a participação dos frades dominicanos na resistência à ditadura. A entrevista publicada a seguir é o resultado de um diálogo com a jornalista Júlia Magalhães, no âmbito da pesquisa sobre a participação política no Brasil que o instituto Ideafix realizou para o IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade).
Qual é sua percepção sobre a participação política do cidadão brasileiro?
Diria que, no geral, o brasileiro se interessa pouco por política e acaba entrando no engodo dos políticos, que procuram passar o sentimento de nojo pela política. Quem tem nojo da política é governado por quem não tem. Tudo o que os maus políticos querem é que a gente tenha bastante nojo, para que fiquem à vontade nas suas maracutaias.
Contudo, me surpreendeu a mobilização através das redes sociais no 7 de setembro[de 2011]. Até então, só evangélicos, gays e os que são a favor da liberação da maconha ocupavam as ruas. Foi muito positivo ver em várias cidades do Brasil a manifestação contra a corrupção, pela transparência dos votos dos deputados e senadores, pela reforma política, pela reforma agrária, pela auditoria da dívida externa.
Temos infelizmente uma democracia meramente delegativa: vamos às urnas a cada dois anos delegar a nossa representação a um vereador, deputado, presidente, mas temos muito pouco grau de participação. Estamos ainda longe de uma democracia verdadeiramente representativa, principalmente dos setores populares, e mais longe ainda de uma democracia participativa em que sociedade política e sociedade civil dialoguem de igual para igual.
Como o cidadão pode participar de forma mais efetiva?
Haveria dois canais prioritários: primeiro as escolas, que são unidades políticas, mas não têm consciência disso. Elas acabam deixando seus alunos vulneráveis à mídia, principalmente à tevê e à internet, em termos de formação política. O segundo seria a própria mídia, se ela tivesse interesse em formar cidadãos. Mas a mídia tem interesse em formar consumistas, porque é movida pela publicidade. A cidadania tem um espírito crítico, e o espírito crítico é um antídoto ao consumismo. A consciência cidadã da nação brasileira melhoraria muito se o ministério da Educação, os diretores e professores, os donos de escolas tivessem consciência de que a escola deve formar prioritariamente cidadãos, não consumistas e não mão de obra qualificada para o mercado de trabalho.
Você citou questões importantes. Quais os grandes temas que mobilizam a sociedade brasileira, hoje, a seu ver?
Infelizmente os temas que mobilizam a sociedade brasileira não são os que interessariam. Gostaria que a sociedade brasileira se mobilizasse pela reforma agrária, pela reforma política, por reformas de estrutura que o Brasil deseja desde que me entendo por gente. A estrutura fundiária do Brasil nunca foi mexida. Somos, com a Argentina, os dois únicos países das três Américas que nunca passaram por uma reforma agrária. As pessoas se mobilizam pela liberalização da maconha, por fatores evangélicos etc – tudo bem, é um direito delas. Mas infelizmente não se mobilizam por uma reforma política que acabe de fato com a impunidade e a imunidade dos políticos. Não adianta só sairmos nas ruas e gritar “abaixo a corrupção”. Qualquer pressão nesse sentido é positiva, mas insuficiente: a corrupção só vai acabar no momento em que houver mecanismos institucionais capazes de coibir e punir os corruptos e os corruptores. Falta essa consciência na sociedade brasileira.
Existe um discurso bastante presente na atualidade, que é de descrença nas instituições e busca por transformação através dos indivíduos. Qual é sua opinião a respeito?
A Igreja investiu durante séculos nessa utopia de que, mudando as pessoas, mudaríamos o mundo. Basta ver os colégios católicos, dos quais saíram notórios políticos corruptos. O método inverso foi tentado pelo socialismo soviético e não deu certo. Portanto, as estruturas e as pessoas mudam umas às outras.
A questão não é o que vem primeiro, o ovo ou a galinha: são as duas coisas. As pessoas só mudam mudando o mundo. Explico: não adianta querer que seu filho não jogue a caixa de chicletes na rua, se você joga um maço de cigarros, porque a criança é mimetista. Não adianta querer que os políticos não sejam corruptos se eles sabem que não há punição para a corrupção. Então precisamos criar um projeto de sociedade na qual desvios como a corrupção e o nepotismo sejam rigorosamente punidos – e mudar, ao mesmo tempo, os padrões do sentido da vida humana.
Hoje a vida humana está reduzida à busca do prazer, no sentido hedonista da riqueza, do poder, e não das virtudes subjetivas. Isso está levando a uma desumanização que é setorizada pelo crescimento do consumo de drogas. No fundo, o que o drogado está dizendo é: “quero ser feliz e sei que a felicidade não está fora de mim. Mas, como não tenho um sentido de vida que me provoque um ânimo, um entusiasmo, busco na química esse efeito”.
Como é possível mudar isso, você vê um caminho?
Volto a dizer: através da escola e da mídia. Mas, para isso, seria preciso ter um Estado que regulasse a mídia, ignorando essa falácia de que regular mídia é censura. Na verdade, censura é quando um determinado canal de televisão convoca um grupo de formadores de opinião para um debate e determina a exclusão de Frei Betto – porque ele é progressista, de esquerda, solidário a Cuba. Isso é censura, democracia da boca para fora. Na hora de debater o 11 de setembro, a crise econômica, a guerra da Líbia nos grandes veículos de comunicação, você não vê opiniões divergentes.
Um fato recente demonstra bem o que estou dizendo: enquanto os juros subiam, o Banco Central era autônomo. Agora que os juros caem, o Banco Central perde autonomia. Na verdade, a queda dos juros não interessa ao setor financeiro, então eles inventam essa falácia de que é perda de autonomia do Banco Central.
E com relação ao exercício da cidadania?
Cresceu a consciência de cidadania, dos diretos do consumidor, dos direitos humanos, mas ainda estamos muito distantes de vencer preconceitos, discriminações. Talvez esses acirramentos – espancamento de homossexuais, crimes previstos na Lei Maria da Penha –, tudo isso seja sintoma de que estamos avançando, porque antes essas coisas aconteciam mas ninguém falava, e agora elas são notícia, passíveis de ação policial. Então creio que vem crescendo, sim, a consciência de que temos direito à cidadania, à pluralidade cultural, à diversidade religiosa, e não devemos fazer do divergente o diferente. Não devemos cair no fundamentalismo de uma postura que quer se impor a outra, mas praticar tolerância.
Em relação ao mercado de trabalho: as pessoas trabalham cada vez mais, às vezes doze, catorze horas. Como isso interfere na construção de uma sociedade?
Interfere na construção das relações familiares, porque os pais não dão atenção suficiente a seus filhos, não é reservado tempo para lazer, para atividades culturais. Até porque os grandes aglomerados urbanos de classe média-baixa não têm acesso a equipamentos sociais que lhes permitam curtir o esporte, a cultura, a arte. Você vai pela periferia são prédios e prédios, casas e casas, casebres e casebres, raramente vê um campo de futebol, um teatro, cinema então nem pensar. Praticamente o lazer do brasileiro é ver telenovela ou ir ao culto, à igreja, onde ele entra em contato com o transcendente, o mágico. Isso tem uma força muito grande no universo popular porque o ajuda a emergir das dificuldades e sofrimentos. Só uma pequena minoria tem acesso a uma ociosidade criativa.
Como vê a relação entre política e religião?
A política é a forma de organizar nossa convivência social e a religião é a forma de imprimir à nossa resistência um sentido transcendente. São coisas que se complementam em nossas vidas, mas nem sempre é fácil estabelecer as distinções para fazer a sadia conexão. Há muito fundamentalismo de um lado e de outro: aqueles que querem fazer da sua religião uma proposta política e aqueles que querem fazer da política uma verdadeira religião, com partidos que têm papas, cardeais, bispos, crenças, dogmas intocáveis.
Que desafios a relação entre política e religião nos coloca, levando em conta a diversidade de religiões e crenças?
O desafio é desenvolver uma cultura de tolerância religiosa – mas estamos longe disso. Algumas confissões religiosas têm tamanho domínio da mídia que inoculam o horror ao espiritismo, às tradições afro-brasileiras, como a mídia americana cria horror ao islamismo. Hoje, uma pessoa que se diz muçulmana é vista como potencialmente terrorista, tanto que, após 2001, cresceu enormemente o número de muçulmanos agredidos com muita violência, nos Estados Unidos. O simples fato de alguém parecer um muçulmano já é fator de suspeita, de preconceito.
Você imagina novas formas de fazer política?
Quero uma reforma política que mude a estrutura do país: o financiamento público de campanha, fim do caixa dois, punição severa a quem praticar isso; fim dos lobbies do grande capital, de bancos, indústrias; Ficha Limpa rigorosa – isso seria uma reforma política. Também a proporcionalidade de representação da população de cada estado: é um absurdo um estado como o Amapá eleger o mesmo número de senadores de um estado como São Paulo. É preciso limpar a estrutura política brasileira, tem muito resquício da ditadura. Estabelecer a fidelidade partidária, acabar com o voto secreto – elejo um deputado e não sei como ele votou no processo da deputada corrupta que foi filmada prostituindo-se politicamente. Política tem que ser transparente e é preciso que haja uma lei garantindo isso – o que só vai acontecer com pressão popular.
Como você vê a vida e a coabitação das futuras gerações neste pequeno planeta?
A curto prazo, minha visão é pessimista. Acho que a crise financeira vai se agravar, os miseráveis vão invadir cada vez mais o espaço dos ricos, dos que estão bem de vida – porque não há muro, não há polícia, não há lei que detenha o fluxo do mundo do pobre para o mundo do rico. É uma questão de sobrevivência, e quando se trata de sobrevivência a legalidade vem abaixo. Vão crescer os grupos de direita, os governos despóticos, os preconceitos, os fundamentalismos de ambos os lados. Isso tudo vai se agravar daqui para 2020.
Não sei o que vai ser do futuro, mas talvez seja necessário passar por esse inferno para cair a ficha de que precisamos criar um novo modelo de sociedade. Uma sociedade baseada em outros parâmetros, e não no preconceito, na imposição, na guerra, no belicismo, no consumismo. Antigamente um rádio durava uma geração inteira, hoje um aparelho de última geração se torna anacrônico em dois anos, superado. O computador, então, nem se fala.
Estamos reciclando objetos, mas também estamos reciclando pessoas e valores. Hoje as relações pessoais estão sendo mercantilizadas. Isso já ocorria nas relações de trabalho, mas agora se transfere para a vida social. O outro passa a ser encarado como alguém que, de alguma maneira, deve corresponder aos meus interesses, sem que se criem vínculos de alteridade, parceria e solidariedade.
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